Tulipomania: Loucura coletiva
Mania de comprar tulipas causou histeria na Holanda, no século 16
Moacyr Scliar
Será que podemos falar de contágio psíquico? Para a medicina, a expressão parece pouco adequada, já que as doenças mentais ou emocionais não são, em geral, causadas por micróbios, e portanto não deveriam passar de uma pessoa para outra. No entanto, a expressão existe. Foi cunhada pelo psicanalista Carl Jung, ainda que não de forma pioneira, pois antes dele Freud já havia falado em “contágio de grupo”. É um fenômeno pelo qual grande número de pessoas adota um comportamento comum, muitas vezes bizarro, como se fosse uma epidemia de natureza psicológica. E, para a história, esse fato não é tão raro, que acontece sobretudo em épocas de transição, aquelas em que, na frase do filósofo italiano Gramsci, “o novo ainda não nasceu e o velho não morreu”; épocas que põem em questão os valores tradicionais.
Como observou o grande médico do século 19, Rudolph Virchow: se a doença de uma pessoa é expressão da sua vida em condições desfavoráveis, as epidemias – de doença física ou mental – são resultado de distúrbios na vida das populações. Um exemplo disso aconteceu na transição da Idade Média para a Era Moderna. Antigos valores foram subvertidos; a sociedade medieval, estável na sua hierarquia (e na sua pobreza) dava lugar a uma nova estrutura social, em que a ascendente burguesia ditava as regras. É um mundo competitivo, de uma busca, não raro maníaca, de riqueza, de luxo, de luxúria (o sexo, liberado, resultou numa epidemia de sífilis que matou milhares de pessoas por toda a Europa).
Estranhas manifestações ocorriam então – o caso da “dança de São Vito”: de repente, pessoas entregavam-se, na rua ou em qualquer outro lugar, a um bailado frenético, que se prolongava até a exaustão. Arrancavam todas as roupas, gritavam, blasfemavam, faziam gestos obscenos, riam ou choravam, rolavam no chão. Na Itália, fenômeno similar deu origem à tarantela; os tarantati atribuíam a compulsão por cantar e dançar em público à picada da aranha tarântula. Uma das mais estranhas epidemias psíquicas que a história da medicina registrou foi a tulipomania, que teve início quando, em 1562, atracou no porto de Antuérpia um navio que trazia de Constantinopla um carregamento de bulbos de tulipa. Muito bonita e exótica, em forma de turbante (em turco, tülbent) e originária do misterioso Oriente, a flor tinha todos os ingredientes para despertar curiosidade e desejo. Tulipa entrou na moda. Mais que isso, transformou-se em obsessão. Novas variedades eram supervalorizadas e davam a quem as possuía um prestígio inimaginável. Um conhecido médico de Amsterdã, Claes Pietersz, mudou o próprio nome para Nicolaes Tulp, adotando a tulipa como símbolo pessoal. E sob seu novo nome foi retratado por Rembrandt no famoso A lição de anatomia do Dr.Tulp. O resultado desse frenesi foi um surto especulativo sem precendentes na história do nascente capitalismo holandês. O preço das tulipas disparou. Pessoas vendiam propriedades ou se endividavam para comprá-las. A literatura médica da época relata estranhos acontecimentos: um comerciante deu a um marinheiro que lhe tinha trazido mercadorias um arenque como pagamento. O homem viu, no escritório do comerciante, algo que lhe pareceu uma cebola e resolveu comê-la junto com o prato principal. Quando o dono deu pela falta da suposta cebola, entrou em pânico: correu atrás do marinheiro e encontrou-o mastigando o que, na verdade, era um bulbo da tulipa Semper augustus, que valia o equivalente a uma mansão em Amsterdã.
A partir de 1635, as tulipas passaram a ser vendidas ainda durante o cultivo. Para isso, eram emitidas notas promissórias conhecidas como windhandel, ou “comércio no vento”. Os papéis só fizeram crescer a bolha de especulação, na qual até pessoas humildes apostavam suas economias. Dois anos depois, quando o preço das tulipas despencou, muita gente acabou arruinada, o que gerou uma baita crise social.
Mas, afinal, por que tulipas? Por que não uma coisa mais durável, como jóias, porcelanas chinesas ou tapetes orientais? Resposta: por que, além de sua beleza, a tulipa se prestava para a especulação. É sazonal; e, como todo produto natural, está sujeita aos caprichos meteorológicos. Quer dizer: ora a tulipa existe, ora não, o que é ótimo para as manobras especulativas. Existe aí uma certa lógica, sobre a qual a mania acaba predominando, com resultados não raro catastróficos.
A tulipomania lembra-nos a frase de Shakespeare: entre o céu e a terra há muitas coisas que a nossa filosofia não alcança. Entre essas coisas, estão as irisadas bolhas especulativas que ascendem no ar até estourarem sem deixar vestígio.
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